sábado, 9 de outubro de 2010

Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante...

... Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.

Contrariando padrões por mim estabelecido sobre esse blog, de só postar texto meu, há ocasiões que a inspiração foge pra tão longe que seu retorno é demorado, e há tantas coisas lindas que merecem ser divulgadas.
Primeiro quero dizer que me reservo ao direito de mudar de opinião, de rever conceitos, de pensar direito, estou dizendo isso porque eu andei meio desacreditada com a Marina, para dizer a verdade peguei verdadeira antipatia por ela, pois tinha a impressão de que ela estava muito apelativa no começo da campanha, tipo, "pobre, negra e mulher", sem falar que ela andou postando certas coisas em seu blog, que, verdade seja dita, concordo totalmente com ela, mas acho que não é coisa pra candidata a presidência sequer pensar, quem dirá divulgar.
Eu seguia disposta a votar em branco,  não sei se para me vingar da pretensão da Dilma ou da antipatia do Serra, embora os dois sejam antipáticos, eu fui cada vez mais me afeiçoando a Marina, mesmo tantas vezes me lamentando por ela ser tão mal assessorada, e em tantas oportunidades em que podia e devia falar bem, se perdia em sua prolixidade, até que, pesquisa aqui, procura dali, fui conhecendo sua vida, seus feitos, seus sofrimentos, fui cada vez mais respeitando-a e admirando-a, tal qual aconteceu com meu amor por Frida que começou com uma aversão que parecia inversível, achava sua obra apelativa, sofrida, e achava que ela só queria atenção e que todos sentissem pena de seu sofrimento, pra mim ela era melancólica e depressiva. Então ao conhecer sua vida, seus sofrimentos e sua capacidade de superação, apaixonei-me irremediavelmente, e suas obras antes tristes e feias, tomaram novas formas e cores diante de minha retina.
No entanto mesmo admirando e respeitando Frida, ainda sim tenho minhas reservas com relação a ela, e com a Marina não é diferente, reservas essas, que não vem ao caso, e é muito particular. Por que estou mencionando a Frida kahlo? Por que tem a ver com o texto a seguir: 

A fome de Maria por José Bessa Freire:




Há pouco, Caetano Veloso descartou do seu horizonte eleitoral o presidente Lula da Silva, justificando: “Lula é analfabeto”. Por isso, o cantor baiano aderiu à candidatura da senadora Marina da Silva, que tem diploma universitário. Agora, vem a roqueira Rita Lee dizendo que nem assim vota em Marina para presidente, “porque ela tem cara de quem está com fome”.

Os Silva não têm saída: se correr o Caetano pega, se ficar a Rita come. Tais declarações são espantosas, porque foram feitas não por pistoleiros truculentos, mas por dois artistas refinados, sensíveis e contestadores, cujas músicas nos embalam e nos ajudam a compreender a aventura da existência humana. Num país dominado durante cinco séculos por bacharéis cevados, roliços e enxudiosos, eles naturalizaram o canudo de papel e a banha como requisitos indispensáveis ao exercício de governar, para o qual os Silva, por serem iletrados e subnutridos, estariam despreparados.

Caetano Veloso e Rita Lee foram levianos, deselegantes e preconceituosos. Ofenderam o povo brasileiro, que abriga, afinal, uma multidão de silvas famélicos e desescolarizados. De um lado, reforçam a ideia burra e cartorial de que o saber só existe sefor sacramentado pela escola e que tal saber é condição *sine qua non* para o exercício do poder. De outro, pecam querendo nos fazer acreditar que quem está com fome carece de qualidades para o exercício da representação política.

A rainha do rock, debochada, irreverente e crítica, a quem todos admiramos, dessa vez pisou na bola. Feio.“Venenosa! Êh êh êh êh êh!/ Erva venenosa, êh êh êh êh êh!/ É pior do que cobra cascavel/ O seu veneno é cruel…/ Deus do céu!/ Como ela é maldosa!”. Nenhum dos dois - nem Caetano, nem Rita - têm tutano para entender esse Brasil profundo que os silvas representam.

A senadora Marina da Silva tem mesmo cara de quem está com fome? Ou se trata de um preconceito da roqueira, que só vê desnutrição ali onde nós vemos uma beleza frágil e sofrida de Frida Kahlo, com seu cabelo amarrado em um coque, seus vestidos longos e seu inevitável xale? Talvez Rita Lee tenha razão em ver fome na cara de Marina, mas se trata de uma fome plural, cuja geografia precisa ser delineada. Se for fome, é fome de quê?

O mapa da fome 

A primeira fome de Marina é, efetivamente, fome de comida, fome que roeu sua infância de menina seringueira, quando comeu a macaxeira que o capiroto ralou. Traz em seu rosto as marcas da pobreza, de uma fome crônica que nasceu com ela na colocação de Breu Velho, dentro do Seringal Bagaço, no Acre. Órfã da mãe ainda menina, acordava de madrugada, andava quilômetros para cortar seringa, fazia roça, remava, carregava água, pescava e até caçava. Três de seus irmãos não aguentaram e acabaram aumentando o alto índice de
mortalidade infantil. 

Com seus 53 quilos atuais, a segunda fome de Marina é dos alimentos que, mesmo agora, com salário de senadora, não pode usufruir: carne vermelha, frutos do mar, lactose, condimentos e uma longa lista de uma rigorosa dieta prescrita pelos médicos, em razão de doenças contraídas quando cortava seringa no meio da floresta. Aos seis anos, ela teve o sangue contaminado por mercúrio. Contraiu cinco malárias, três hepatites e uma leishmaniose.

A fome de conhecimentos é a terceira fome de Marina. Não havia escolas noseringal. Ela adquiriu os saberes da floresta através da experiência e do mundo mágico da oralidade. Quando contraiu hepatite, aos 16 anos, foi para a cidade em busca de tratamento médico e aí mitigou o apetite por novos saberes nas aulas do Mobral e no curso de Educação Integrada, onde aprendeu a ler e escrever. Fez os supletivos de 1º e 2º graus e depois o vestibular para o Curso de História da Universidade Federal do Acre, trabalhando como empregada doméstica, lavando roupa, cozinhando, faxinando. Fome e sede de justiça: essa é sua quarta fome. Para saciá-la, militou nas Comunidades Eclesiais de Base, na associação de moradores de seu bairro, no movimento estudantil e sindical. Junto com Chico Mendes, fundou a CUT no Acre e depois ajudou a construir o PT.

Exerceu dois mandatos de vereadora em Rio Branco , quando devolveu o dinheiro das mordomias legais, mas escandalosas, forçando os demais vereadores a fazerem o mesmo. Elegeu-se deputada estadual e depois senadora, também por dois mandatos, defendendo os índios, os trabalhadores rurais e os povos da floresta. Quem viveu da floresta, não quer que a floresta morra. A cidadania ambiental faz parte da sua quinta fome. Ministra do Meio Ambiente, ela criou o Serviço Florestal Brasileiro e o Fundo de Desenvolvimento para gerir as florestas e
estimular o manejo florestal. Combateu, através do Ibama, as atividades predatórias. Reduziu, em três anos, o desmatamento da Amazônia de 57%, com a apreensão de um milhão de metros cúbicos de madeira, prisão de mais 700 criminosos ambientais, desmonte de mais de 1,5 mil empresas ilegais e inibição de 37 mil propriedades de grilagem.

José Bessa Freire, Professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ)epesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO)

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